sexta-feira, outubro 06, 2006

Vale a pena tudo isso?

Saber o desengano preciso das coisas. Em cada vulto a memória. Um vai-vem descarado de objectos e pessoas. [...] A espuma e o tempo mordidos pelos bichos que espreitam por detrás da porta. Agora a mão que articula um gesto. Ciranda pela casa. Não há luz. Não. Nunca não há. A mão de novo. Tacteia a parede. A tomada. Um repente miraculoso de claridade e nojo. Desliga. Senta-se. Saber a composição precisa do material dos afectos. Os fios de aranha que liga o coração à boca. As palavras aos gestos. A memória à matéria da memória. A mão cansada procura refúgio. Levanta os olhos. Os olhos olham a porção que o coração lhes reserva.
A cama.
Os lençóis de hibernauta solitário.
A almofada onde a cabeça diz que sim ao sonho.
(Procura no coilchão o sulco impreciso da companhia. Procura no colchão a última palavra que ouviu antes de se instalar o nada perpétuo. Com as mãos galga o espaço entre a tristeza e a memória.)
[...]
As mãos prudentes afagam o interruptor. As mãos que rezam que recebem e distribuem afectos. As mãos prestam contas ao corpo que lentamente cava o conforto do abandono. Amanhã é outro dia.

Valério Romão


Vale a pena tudo isso?...